Princípios de composição para além do papel. Ou: você sabe a diferença entre harmonia e unidade?
Um bom desenho ou pintura, embora sejam expressões de criatividade, não estão livres de estruturas bem definidas. Algumas, como a forma humana, são difíceis de se formular com precisão. São necessários anos de observação e prática para se aprender os segredos que elas guardam. Felizmente, outras são mais acessíveis. Tenho em mente aqui os princípios de composição gráfica e quero mostrar como a utilidade deles pode ir para além da estética.
A melhor exposição desses princípios que conheço está no livro Watercolor for the Serious Beginner. Na página 37 a autora os introduz de modo breve e incisivo no contexto da pintura. Numa composição, o tipo e posição de seus vários elementos são estabelecidos observando-se diversas propriedades das relações entre eles. Não se trata de formular precisamente essas relações, mas apenas de manter o artista atento aos efeitos das escolhas que faz. Mais importante, não apenas o artista: rapidamente me ficou clara a possibilidade de se aplicar desses princípios de design na vida como um todo. São, com efeito, verdadeiros princípios éticos [1].
Tomemos um princípio famoso e fácil de se compreender, o equilíbrio. Se um dos lados do desenho contém muitos ou grandes elementos e o lado oposto contém poucos ou pequenos, há algum desequilíbrio. A transposição para o ético é evidente: se você trabalha muito e se diverte pouco, o uso das suas horas não está equilibrado. Observe que isso não é uma norma; o fato de estar desequilibrado não é, em si, bom ou ruim. A maior parte das pessoas provavelmente não aprovaria essa atitude em geral, mas há quem o faça com entusiasmo. Poucos negariam que um pouco de desequilíbrio ajuda a tornar as coisas menos monótonas. E, de qualquer forma, há situações em que o desequilíbrio é universalmente desejado, como quando se responde a uma emergência.
O princípio do conflito é um pouco mais complexo. Elementos conflitam sob duas condições. Em primeiro lugar, claro, precisam ser elementos de algum modo diferentes, como um círculo e um quadrado. É ainda necessário, porém, que essa diferença seja interessante. Uma árvore e um arbusto não conflitam. Uma árvore e uma duna conflitam. Conflito gera tensão. Mas quem gosta de tensão? Ora, todo apaixonado, que tem “com quem nos mata, lealdade”.
Com apenas esses dois princípios já podemos ver uma relação lógica curiosa. Conflito implica em desequilíbrio, embora o contrário não seja verdade (i.e., o desequilíbrio pode ser causado por elementos do mesmo tipo). Claro que há também uma ambigüidade constante, já que com criatividade suficiente é possível argumentar que uma relação desequilibrada tanto é quanto não é conflituosa. Isso não é necessariamente ruim. O propósito do discurso (interior) não é ganhar um debate, mas apenas fornecer sementes para a imaginação. São e precisam ser maleáveis para servir a esse fim.
O mais interessante começa quando chegamos ao princípio da harmonia, pelo qual os elementos se assemelham em algum aspecto importante. Uma tela com figuras variadas, mas todas azuis e curvilíneas, por exemplo. E o que seria, digamos, uma sociedade harmoniosa? Numa composição harmônica, cada componente leva sua existência sem atrapalhar os demais, mas mantendo algum vínculo comum. Uma sociedade composta de pessoas bem diferentes pode ser vista como harmoniosa se a diferença for pacífica e se houver algo comum, como leis, tradições ou costumes. Não se trata, portanto, de uma pura ausência de conflito, embora um sistema muito harmonioso seja pouco conflitante (eis aí outra relação lógica).
A harmonia social é muitas vezes tida como o objetivo social supremo, e não apenas no mundo ocidental. A julgar pelos documentários que ando vendo, é assim na tradição chinesa também. Todavia, me parece que essa exaltação é um tanto mal direcionada. A razão é um outro princípio de composição menos conhecido, a unidade. Temos unidade quando os vários elementos do sistema não apenas coexistem com certa harmonia, mas também cooperam para atingir um fim comum maior. Normalmente esse é o princípio que rege todos os outros, posto que o artista geralmente deseja transmitir uma mensagem central em cada obra (e às vezes no próprio conjunto de obras).
Ao refletir explicitamente a respeito, me dei conta de que muita gente confunde unidade com harmonia, e esse é um erro fatal. Há quem divida o tempo em coisas muito diferentes, como hobbies dos mais variados e projetos profissionais com poucas relações entre si. Diz a sabedoria popular que “é bom variar”. Sinceramente, concordo. Porém, há um preço a se pagar, pois o dia tem apenas algumas horas e a vida se apaga em poucos anos. Isso vale tanto para pessoas quanto para sociedades inteiras, mas aqui me retenho ao indivíduo, átomo da composição social do qual tudo o mais depende.
É perfeitamente possível levar uma vida harmoniosa, tranqüila, socialmente invejável, e mesmo assim estar insatisfeito, sem nunca compreender o que falta. Ter um bom emprego, uma família simpática, uma linda casa — e se suicidar ao cabo das férias na Disney. Acho justo dizer que a maior parte das pessoas com boa educação anseia por fazer algo relevante com suas existências. Para tanto, estariam melhores se vissem suas vidas mais como obras de arte do que como prateleiras de supermercado (esposa, filhos, trabalho, papel toalha). Se assim o fizéssem, rapidamente topariam com a evidente necessidade de se trazer unidade ao cotidiano.
Atribuo essa situação mais à ignorância e ao acaso do que a operações sinistras de governos e outras organizações. Por outro lado, é preciso reconhecer que na idéia de unidade também reside o fundamento de todo regime totalitário (e.g, “um povo, um império, um líder”). Talvez pelo medo da energia social que o sentimento de unidade pode despertar, o discurso público tenha se distanciado de qualquer noção semelhante. Seja como for, já é tempo de se engrossar esse caldo moral que vem sendo agüado há décadas. A estagnação, e todas as mazelas que a acompanham, é o destino de uma sociedade sem indivíduos com propósitos fortes e ambiciosos.
Ao se estabelecer um tema de unificação, corre-se o risco de se perder a graça. Uma tela em branco não tem sentido, mas representa a unificação por excelência [2]; o nada é incomensuravelmente mais uno do que a multiplicidade da existência. A variedade que tanto se busca na vida é uma medida preventiva quanto a isso. Aqui, mais uma vez a comparação com a arte é útil. Não há regra para se produzir uma bela obra, mas apenas ferramentas, e essas só funcionam após muita experimentação. É preciso saber trabalhar com o inexato e fluído, reconhecendo sua fragilidade, mas também sua potencialidade. Isso é ainda mais relevante para quem tem uma formação principalmente técnico-científica.
De minha parte, tenho tentado escolher e posicionar minhas atividades e projetos de modo que possam se reforçar mutuamente. Precisei ignorar parte da minha curiosidade natural para ter mais foco, mas não por completo. Por exemplo, tenho grande interesse por design de linguagens de programação, e em parte isso implica em aprender novas linguagens. Assim, quando surge a necessidade de se implementar alguma nova ferramenta, avalio a possibilidade de fazê-lo numa nova linguagem também, atingindo assim dois objetivos simultaneamente. De modo mais geral, tenho tentado fazer coisa semelhante no desenvolvimento de produtos e pesquisas. Com isso, tenho produtos mais robustos e pesquisas mais relevantes. Agora há menos projetos inacabados e inúteis abandonados nos calabouços do meu computador, o que quer dizer que estou usando meu tempo de modo mais eficiente.
A princípio temi que essa prática pudesse ser demasiadamente limitante, mas o fato é que, até agora, serviu muito bem para satisfazer meu ímpeto criativo. Não me privei de criar e variar, apenas aprendi a escolher, entre as infinitas possibilidades, aquelas que melhor se encaixam na estratégia geral. É um grande preconceito supor que nossas idéias frívolas e arbitrárias são necessariamente mais criativas do que aquelas que emanam de uma estrutura pré-existente. O universo é demasiadamente rico para isso, onde quer que estejamos haverá algo interessante para ser explorado. Trata-se antes de uma falta de disciplina; e essa disciplina pode ser adquirida e levada longe, basta apenas aprender a ver as coisas sob a perspectiva da unidade resultante, sem esquecer de levar em conta os demais fatores — espécie de crescimento orgânico.
Há outros princípios de design: alternação, domínio, gradação e repetição. Não os explorarei aqui, mas os nomes já sugerem do que se trata [3]. Apenas com isso, neste ponto o leitor talvez já consiga relacioná-los com o que foi dito acima. Tal é o poder de conceitos que tão naturalmente estimulam a imaginação. Temos sorte de que algo imaterial como nossa conduta possa se valer de analogias plásticas, visíveis, na sua elaboração.
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Notas
[1] Ética entendida aqui como o estudo da conduta da vida em geral. Isto é, no sentido aristotélico original (ver Ética à Nicômaco).
[2] Há quem considere uma tela em branco uma grande obra de arte, avaliação da qual evidentemente eu não compartilho. Infelizmente, esse tipo de aberração contribui para a má fama que as artes plásticas têm em alguns círculos.
[3] Além do livro que mencionei, é possível ler sobre isso na Internet também. As exposições, contudo, variam um pouco nos nomes e mesmo nas características dos vários princípios. Infelizmente, não consegui achar as fontes primárias dessas idéias. Eu agradeceria se alguém pudesse me apontá-las.